quinta-feira, 20 de novembro de 2014

Sufocante e claustrofóbica: A Casa de Bonecas ("A doll's House", Ibsen, Patrick Garland, 1973)



A versão cinematográfica de “A casa de Bonecas” (A doll’s House) de 1973, dirigida por Patrick Garland e com roteiro de Christopher Hampton foi uma de minhas melhores e mais essenciais experiencias de Cinema dos últimos tempos – mesmo que ela tenha me feito alterar minha anterior admiração pela versão de Joseph Losey . Ironicamente também de 1973 essa versão concorreu com a de Garland e a de Losey pela atenção do público e transformou-se na mais conhecida, bem-sucedida das duas… algo que tem muito que ver com o perfil político e contestador de “Hanoi Jane” (Jane Fonda) mas esta é uma outra estória.


Hoje gostaria de tertuliar sobre a versão que assisti há pouco tempo, a versão com a maravilhosa Claire Bloom e um jovem Anthony Hopkins… Este filme teve suas origens na adaptação de Christopher Hampton, que foi dirigida por Patrick Garland e que foi estrelada por Miss Bloom na Broadway em 1971…

Acima: uma rara foto de Miss Bloom na Broadway em 1971 como "Nora".

Com exceção das raras excursões que nos levam para fora da casa dos “Helmer” –por razões únicamente cinematográficas - a produção se mantém fiel à precisão do texto e do timing original da peça.
O foco, o “núcleo” principal do filme se mantém no interior do sufocante e claustrofóbico lar (provávelmente super aquecido) dos Helmer. Dentro da casa de Torvard Helmer na qual ele brinca com sua boneca, Nora, da mesma forma que ela brinca com seus filhos…


Ibsen escreveu “Casa” em 1879. Sua primeira versão em ingles só em 1889. Quando George Bernard Shaw escreveu uma crítica sobre a “revival” de 1897 em Londres, ele inteligentemente chamou atenção à polemica que esta peça havia causado préviamente da seguinte forma: relatando que agora, já que o público havia aprendido a aceitar as idéias, outrora consideradas radicais, de Ibsen, ele se sentia na obrigação de chamar atenção à façanha e ao exito da peça em si, por si mesma, sem a adulada publicidade gratuita da notoriedade… Shaw, que chamava Ibsen de “um melhor dramaturgo que Shakespeare” não queria que o público negligenciasse a peça por não mais ser o “escandalo vergonhoso” que foi nos seus primeiros anos… O escandalo que havia sido tão grande que levou o próprio Ibsen a escrever um final feliz (para suas apresentações na Alemanha); o que contradizia totalmente o que intencionou “comunicar” como mensagem principal em “Casa”!

Shaw não precisava ter-se preocupado: “Casa” continua atualíssima no seu tema… até na burguesa e convencional Alemanha de hoje em dia. Penso que hoje em dia até bastante mais do que nos anos 70 do século passado. Quantos exemplos conhecemos de “bonecas” sem opinião que são sómente objetos para seus maridos? (Alguém se lembra do recente filme “Mona Lisa’s Smile” com Julia Roberts?) Quando olho ao meu redor… me assusto com esta "regressão"...



A versão com Claire Bloom é brindada com uma interpretação tão clássica quanto possível, tratando-se de “Cinema”, que “ruge ferozmente” como teatro de melhor qualidade!

Note-se, como mencionado acima, que, ao invés da versão de Losey, esta se mantém completamente fiel ao texto original de Ibsen… Tive que comparar o diálogo final entre Claire Bloom e Anthony Hopkins com o de Jane Fonda e Edward Fox na outra versão de 1973… O segundo dura menos do que a metade do tempo do original… Já era de madrugada mas eu me manti colado nas duas versões… analisando-as, comparando-as e revendo-as várias vezes… como adoro esses momentos de fertilidade intelectual, de análise! (mesmo com a "catástrofe do acordar" no dia seguinte para trabalhar... ).

O que mais me encanta é o fato de Mr. Garland e Mr. Hampton óbviamente pensarem que Ibsen sabia o que fazia. Respeito.
Admiro a forma como fizeram seu “emprego”: sem alterar, atualizar ou rearranjar drásticamente a peça e sim dando a melhor “leitura” possível desta obra que o (pouco) dinheiro da produção tornava possível… Não existem intenções em transformar Nora numa feminista contemporanea. E, entre nós, este é um dos motivos do qual mais suspeito, que levou Jane Fonda a aceitar o papel…


Mesmo com as curtas excursões (também mencionadas acima) que nos levam para fora da casa dos Helmer. Nós, como público “vivenciamos”, ao lado à Nora, um forte confinamento, enclausuramento físico… algo que é muito fácil de atingir numa peça de um só cenário (no palco) mas que é extremamente fácil de se perder quando este cenário é aberto e outros aparecem (na sétima arte) e o que é nosso caso neste filme! Este mesmo confinamento físico é condicio-sine-qua-non para acreditar-mos na progressão teatral, na realidade da avalanche emocional que toma conta de Nora – a esposa brinquedo do sábado que se torna uma mulher liberada ao chegar da segunda-feira.

Claire Bloom domina a cena majestosamente (como a grande atriz que é) e compreende muito bem os motivos, as "entranhas" de Nora. Sua construção do personagem é fascinante em sua sutilidade. Ela começa bastante vagarosa, sómente uma bobinha fútil, nos dando poucas chances de “ver” Nora, seu interior… só para depois alcançar na sua confrontação final com o marido, Torvald (Anthony Hopkins) um desempenho tão completo e forte, repleto de “bravura”, não exitando por um segundo em nos dar mais… e mais …e mais!
Numa espécie de ininterrupto Zenith. Sim, fascinante e impressionante!

Claire já havia na época passado da idade de Nora (Eu “vejo” Nora, que tem dois filhinhos pequenos, como uma jovem matrona de 25, 26 anos. Claire já tinha 42) mas isto não importa. Sua fundamentada e sólida interpretação transcende estas simples perguntas dos mortais sobre idade cronológica...



Impossível olvidar o maravilhoso cast que a „sustenta“: O desonrado chantagista Krogstad (Denholm Elliott), Sir Ralph Richardson (Dr. Rank), amigo íntimo da família, secretamente atraído sexualmente por Nora, que está morrendo de sífilis, Anna Massey (Kristine Linde), simplesmente maravilhosa no quase “impossível e ingrato” papel da confidente de Nora e Dame Edith Evans (Anne-Marie), presenteando esta produção não só com sua presença mas com seu carisma, é da mesma forma um símbolo do teatro ingles como aqui o único símbolo de amor e establidade e carinho na árida vida emocional de Nora.

Anthony Hopkins, um jovem Anthony Hopkins, já nos mostra porque se transformaria no “monstro-sagrado” no qual se transformou hoje em dia. Seu Torvald não é só um tirano e prisioneiro do seu próprio conservadorismo mas um homem também feito de carne e sangue, que quase nos dá pena quando Norma decide abandoná-lo… e também os filhos… Muitos “Torvalds” são só figuras de um extremo antagonismo.
Seu Torvald é um ser humano, corrompido por valores burgueses e idéias pré-concebidas sobre dinheiro, posição, poder e… sobre os papéis "definidos" do homem e da mulher num caamento... Mas "lemos" que óbviamente esta não é só SUA culpa. Ibsen sabia o quanto a vida pode nos transformar, corromper.



Se uma reserva que muitos tem com o filme é sua forma de ter sido fotografado, gostaria de adicionar aqui que não podemos esquecer por um momento que este filme consiste de um trabalho teatral, de uma peça de teatro fotografada.
Mesmo assim, vezes, a camera se move um pouco “demais” para meu gosto… como na cena final, pulando de um close-up médio de Nora para outro de Torvald constantemente. Numa espécie de ping-pong. Como teria sido o resultado se esta mesma camera tivesse ficado à uma certa distancia nos permitindo olhar para o que decidimos, para o que mais nos atrai ou chama a atenção? Alguém já deu conta de como podemos ler uma peça teatral de várias maneiras diferentes dependendo do nosso estado emocional e físico quando a assistimos várias vezes?

Mas isto é só um pensamento e lá estou eu de novo à „voar“ nele, saíndo do conteúdo, da essencia desta „Tertúlia“.
Vejam, se puderem o diálogo final... abaixo!


Apenas umas últimas palavras antes de finalizar: as tramas de Ibsen são tão maravilhosamente idealizadas, suas cenas tão precisamente construídas e seus personagens tão bem esculpidos que o menor manipulação, interferencia com eles poderia despedaçá-los.

Por isso meu respeito e admiração a Christopher Hampton e Patrick Garland por este magnífico trabalho. Chapeau!

P.S. E nem falamos sobre um dos tabús que existe sobre „Nora“ desde sua premiere 1879: O fato de não só abandonar o marido, o lar e sim também os filhos…

No diálogo final Nora responde a Torvald, quando confrontada sobre “sua obrigação com ele, com os filhos e com a casa“ que sua maior obrigação é com ela mesma… Pano para manga…

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